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A sina dos seis monçoeiros - O triste fim de Bartolomeu

 


    Bartolomeu também era um homem forte com feições sofridas pela vida dura de proeiro durante as monções, o rosto queimado pelo sol, os olhos amarelados, cabelos curtos, barba longa e maltratada, um pouco grisalho. Acabara de picar o fumo de corda e enrolar cuidadosamente na palha para enfim tragar o cigarro como se fosse o último da vida, e então começou a narrar sua história:

    — Estávamos Carlos, Vicente eu, observando o rio e conversando sobre a Pirataca, gratos pela providência divina em afastar o monstro dos batelões, preocupados com os amigos que seguiram viagem e proseando sobre os perigos do rio. Escutamos ao longe o barulho de galhos quebrando; poderiam ser índios, um jaguar, outros monçoeiros… Botamos sentido no barulho, que parecia estar se distanciando; logo nos distraímos com a correnteza do rio. Aproveitamos a aparente calmaria para beber mais um pouco, pois era sabido que ao chegar ao destino a caninha não estaria nos esperando. Carlos e Vicente acabaram pegando no sono: fracotes!

    Os seis homens esfarrapados começaram a rir e a se servirem de mais cachaça, convidando os outros três homens a acompanharem, brindaram e beberam. Logo depois, o semblante dos seis tripulantes ficou mais duro e tenso, e Bartolomeu retomou a história:

    — Com os dois companheiros dormindo, pude observar com mais atenção a correnteza do rio, o céu que estava claro naquela noite fria de abril ou maio; tanto tempo havia passado que não era mais possível ter certeza. — E, voltando-se para os três homens que ainda respiravam, Bartolomeu questionou: — Em que dia estamos?

    — Dia dez de abril de 1982. — Disse o seu avô Anselmo.

    — Ora pois! Mais de duzentos anos de nossa saída! Há quanto tempo temos vagado por esse rio sem descanso!

    Todos ficaram perplexos com essa revelação, e então Bartolomeu recomeçou:

    — Como eu dizia: a noite estava fria e clara. Era possível ver o Tapirapé, o caminho das estrelas, como era chamada a Via Láctea pelos índios. Estava tão lindo e tão calmo; o rio fluía calmamente. Cheguei a sentir uma profunda paz. Foi quando avistei um ser mágico na margem: uma bela mulher de pele morena, cabelos longos, pretos e lisos, com um belo vestido cuja cor não consegui distinguir. Ela estava se aproximando do acampamento, mas parecia flutuar, alheia à nossa presença. Levantei-me, mas ela permanecia em sua caminhada; sequer olhou para mim. Percebi então que se tratava de um espírito atormentado do rio Anhemby, e então me benzi e fiz uma reza para que aquela alma seguisse seu caminho em paz e alcançasse o paraíso. Ela se foi, e após rezar ao Senhor Bom Jesus do Cuiabá, pedindo proteção – Ele já me livrara de inúmeros infortúnios e me guardara dos demônios que assombravam aquele rio –, voltei à minha vigília. O rio permanecia calmo, o céu límpido e claro. No nosso acampamento tudo parecia em paz. Carlos e Vicente estavam dormindo feito bebês. Nada poderia acontecer naquela noite, pensei. Mas eu estava muito enganado.

    Neste momento, os homens serviram-se de mais cachaça, e Bartolomeu pegou seu fumo de corda e passou a picá-lo enquanto lhe serviam bebida. Enrolou-o na palha, acendeu mais um cigarro e, após uma longa tragada, voltou a falar:

    — De repente, aquela aparição retornou, e dessa vez veio em minha direção. Não consegui me mexer; parecia que o tempo havia parado. Aproximando-se, ela anunciou que eu jamais veria o sol novamente e que aqueles homens nunca alcançariam seu destino. Estávamos em solo sagrado, profanado por nossas transgressões. Nesse instante, um denso nevoeiro nos envolveu e ela desapareceu. Espantado, acordei Carlos e Vicente e contei-lhes o encontro. Vicente começou a contar o encontro que teve com uma Mãe-D'água formosa que tentou encantá-lo e quase logrou êxito. Carlos, por ser mais jovem, ficou bastante assombrado. Ficamos os três acordados. Algumas horas se passaram, mas o dia não clareava; aquela noite transformou-se num martírio, e eu estava sedento, aguardando o nascer do sol para ter certeza de que o veria novamente. Ai de mim! A surpresa do ataque veio com a chegada dos nativos. Flechas e azagaias voavam, porretes desciam com força.  Meus companheiros, tomados de sono, reagiram com pistolas e arcabuzes, mas eram superados em número.  A fuga para os batelões foi imediata e caótica.  Corri o mais rápido que pude, até que uma azagaia me atingiu no peito. Caí, recebendo em seguida um golpe de porrete na cabeça. – Bartolomeu levantou a camisa, mostrando a ferida, e então, puxando os cabelos para que nós três víssemos, exibiu o profundo corte em seu crânio. – Foi nesse instante que a mulher vista na margem se aproximou, sua voz carregada de fúria: “Não pense que esse será o fim. Vocês invadiram nossa terra sagrada e não merecem mais respirar neste mundo.” Vi a alvorada se aproximar, e então tudo se apagou.

    A surpresa dos três amigos era inegável. Bartolomeu, então, concluiu sua narrativa:

    — Ao despertar, a cena de luta e as baixas em ambos os lados me revelaram que não estava sozinho. A aparição surgiu, anunciando breve reencontro com meus amigos e longos momentos juntos, antes de desaparecer.  Instantes depois, avistei uma canoa aproximando-se, transportando meus companheiros de viagem. Compreendi, então, o destino que nos unia.



Ficou perdido? Leia os capítulos anteriores.


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