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A sina dos seis monçoeiros - O avistamento da Pirataca

    

    Casimiro era um homem alto e forte, a pele branca queimada pelo sol e oleosa, cheia de feridas, umas curadas, outras abertas. O cabelo longo, liso e castanho-claro, com uma barba curta malfeita, com falhas e cicatrizes. Era o mais bem vestido do grupo, não que suas roupas não estivessem esfarrapadas, mas aparentemente era o líder daqueles homens. Ele iniciou os relatos:

    — Bem, meus amigos, não sei como nos encontramos: vocês do lado de lá e nós do lado de cá, mas enfim, vamos aproveitar essa oportunidade para conversar antes de cada um seguir seu caminho. — Disse Casimiro, e então começou a contar sua sina: — Nossa embarcação fazia parte de uma monção que seguiria pelo rio Anhemby, de São Paulo para o centro do país, no Mato Grosso e Goiás, onde a busca por ouro e pedras preciosas mostrava-se benéfica. Seguíamos com mercadorias para comercializar com os garimpeiros que lá estavam. Havia cerca de dez batelões em nosso comboio. — Casimiro apontou para a canoa e os homens entenderam que esse era o nome dado àquela embarcação. — A viagem duraria alguns meses, sendo já nossa quarta aventura. Oh, se soubesse que seria a última, teria aproveitado um pouco mais no porto de Araritaguaba, o porto feliz. — Todos os homens acenaram positivamente. — Então nossos problemas começaram a aparecer nesse trecho em que nos encontramos, por isso nossa recepção tão truculenta. O primeiro agouro foi a visão da Pirataca.

    — Pirataca?! — Munduco perguntou.

    — Sim, uma enorme serpente passando lentamente por baixo dos batelões. Vicente foi o primeiro a perceber, nos avisando com cuidado. Ao que, já com as armas em punho, aguardamos o ataque. Percebendo que seria uma grande peleja, talvez, o monstro seguiu adiante sem atacar qualquer embarcação do comboio. A Pirataca era um monstro-serpente que devorava homens; ela emergia das águas do rio e nenhum filho de Deus podia fugir de suas presas: uma cobra gigantesca com dentes enormes. Virava os batelões e a carnificina se seguia. Quem tivesse a sorte de avistar a tempo de sair das águas muitas vezes conseguia escapar, ouvindo os gritos de horror dos pobres desavisados e guardando em sua mente a triste cena até o fim de seus dias.

    Ao contar sobre o monstro e os desafortunados que o encontraram, Casimiro ergueu o copo de bebida e foi seguido por seus companheiros; os outros três homens também seguiram o movimento e brindaram.

    — Decidimos parar para descansar e orar pela graça concedida, pois dessa vez passamos ilesos, mas nem todos os pilotos compartilhavam da mesma intenção: quatro batelões ficaram e os outros seis seguiram. Nunca saberemos se tiveram mais sorte. ‒ disse Casimiro com o olhar distante.

    O silêncio, denso e opressivo, prenunciava momentos de angústia e desespero.  Casimiro prosseguiu com seu relato:

    — Então, descarregamos alguns mantimentos e iniciamos a montagem do nosso acampamento: alguns homens cuidaram da refeição, outros dos alojamentos, e Bartolomeu e Matias cuidaram de montar um altar para Nosso Senhor, a fim de agradecermos a graça. Realizamos nossas orações, nos alimentamos e, assim como estamos fazendo agora, bebemos um pouco para acalmar a alma e proseamos. Alguns homens começaram a contar suas aventuras e visões que tiveram durante viagens passadas naquele trajeto. Lembro-me de ouvir sobre um ataque de Pirataca que foi testemunhado por um piloto e seu proeiro, que só conseguiram escapar por nadarem até a margem a tempo; porém, os outros tripulantes não tiveram a mesma sorte. Ficaram dias andando na mata até encontrarem uma trilha e chegarem a um vilarejo próximo de Jahu. Lá conseguiram pouso, uma canoa, seis remeiros e voltaram para as águas, seguindo viagem. Ao chegarem ao destino, procuraram pelos companheiros, mas ninguém havia chegado daquele comboio. Foram até a capela do Senhor Bom Jesus do Cuiabá e lá fizeram suas rezas pelas almas dos amigos e pediram proteção para o retorno. A noite já ia alta; alguns homens já tinham se recolhido após um sorteio para a vigília daquela parada. Fui descansar e Bartolomeu ficou de vigília. Conte-nos como foi o seu turno, meu amigo. — E, indicando Bartolomeu no meio da roda de conversa, Casimiro passou a história ao companheiro.








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