Pular para o conteúdo principal

A sina dos seis monçoeiros - O encontro com a canoa fantasma

 



Com o falecimento do meu avô, senhor Anselmo Pelotas, a família toda precisou se mobilizar para resolver assuntos de inventário. Dentre os bens, constava uma propriedade beira-rio no Rio Tietê, onde o velho, exímio pescador e, com isso, detentor de várias histórias para contar, gostava de passar seus dias de aposentadoria lembrando da época em que o rio era navegável e havia a possibilidade de realizar festejos e pescarias, reunindo amigos e familiares.

Lembro que adorávamos a época das férias escolares, pois sempre passávamos o período na casinha vermelha de tijolos aparentes e brincávamos livremente pelo terreno, que era muito grande, considerando o espaço que tínhamos para brincar durante o resto do ano. Então, durante os meses de julho, dezembro e janeiro, lá ia a garotada — aquele monte de criança com uma energia enorme —, e os velhos adoravam!

Minha avó, dona Constança Pelotas, cozinhava várias comidas de sítio: bolos, doces, suco de fruta colhida do pé. Só brigava com a criançada no fim do dia, pois era hora de as crianças irem para a cama, como ela dizia.

Quando nossa avó se foi, todos sentimos. Ela era aquele tipo de mulher que abraça a gente com o olhar. Meu avô sentiu ainda mais e não conseguiu ficar na propriedade sozinho, mudando-se para a capital, onde poderia ser assistido pelos filhos. E assim passaram-se quase cinco anos, até que, durante uma grande epidemia, ele não resistiu e então foi encontrar-se com a esposa, sua companheira de vida, com quem construiu uma família enorme para os padrões de hoje: seis filhos.

Após todo o processo de luto, que foi penoso para toda a família, nos encontramos na velha casinha vermelha, decididos a passar um fim de semana na casa para verificar os pertences e avaliar o que seria feito com a propriedade. Mas nem todos conseguiram ir por conta de compromissos ou puro desinteresse; no fim, é isso o que acaba acontecendo com as famílias grandes: elas diminuem conforme a base se desfaz.

Então fomos os primos Jonas, Carlos, Gustavo, Letícia, Ana e eu, e os filhos dos velhos que ainda estavam vivos e que conseguiram se desprender das urgências da modernidade: minha mãe, Marina, minha tia Mariana, meu tio João e meu tio José, assim como seus companheiros.

Chegando lá, o coração apertou um pouco; era muito triste a certeza de que os bons tempos vividos naquela casa nunca mais voltariam. Limpamos, organizamos e listamos os itens enquanto minha mãe e minhas tias faziam a comida e meu pai e meus tios faziam alguns consertos necessários.

Após o almoço, que saiu um pouco tarde, os mais velhos foram descansar; era pesado para eles vivenciar aquele momento. Nós, que ainda estávamos com energia (não como na infância, é claro), fomos para um cantinho muito especial, pois era onde meu avô sempre nos contava uma de suas histórias de pescador. Nós adorávamos esse momento, apesar de algumas histórias nos deixarem com medo de dormir; mas era sempre bom ouvir o velho Anselmo contar suas aventuras de juventude.

Letícia lembrou-se de uma história que nosso avô contava sempre que se sentava naquela varandinha com vista para um pequeno porto, por onde meu avô se adentrava no rio com seu pequeno barco para pescar; coisa impensável nos dias de hoje, visto o estado de degradação do pobre rio Tietê na passagem pela propriedade.  Começamos a pensar nessa história quando nosso tio João apareceu e sentou-se conosco.

‒ A história da canoa fantasma era a mais arrepiante. Toda vez que começava o nevoeiro, eu entrava para casa e não saía mais. — lembrou Letícia, e todos nós concordamos. Então, o tio João disse:

‒ Eu já vi essa canoa, mas não tive a coragem de meu pai e seus amigos para seguir o barco; só observei.

‒ Sério?! Tio, o senhor se lembra da história? — perguntamos quase em coro ao tio João.

‒ Claro! Vamos relembrá-la. Meu pai adorava essa história.

Então ele começou a contar a história da canoa fantasma:

O dia já havia terminado e a noite já estava alta quando seu avô e os amigos Joca e Munduco permaneciam na beira do rio ainda tentando fisgar alguma coisa com suas varas de pesca rudimentares. As mulheres e crianças já estavam no oitavo sono àquela hora, e eles estavam aproveitando um pouco o sossego, a conversa, a pinga e os cigarros de palha, quando, de repente, chegou um nevoeiro denso. Para eles, aquele era um aviso de que não seria possível pescar mais nada, e então recolheram seus equipamentos. Estavam já ancorando o barco quando ouviram, vindo do meio do nevoeiro, um barulho de remadas firmes e constantes.  Parou a conversa, e os três passaram a prestar atenção na direção do barulho. Foi quando conseguiram enxergar, na bruma, a silhueta do que parecia um barco, uma grande canoa com cerca de seis pessoas que seguiam num ritmo acelerado descendo o rio. Apenas com um olhar, eles concordaram em segui-lo.  Bebida não é uma boa conselheira: deixa os homens valentes e negligentes. Então, entraram no pequeno barco do seu avô e, como os misteriosos marinheiros tinham acabado de passar, os três homens decidiram segui-los com a velocidade reduzida do pequeno motor. Adentraram no nevoeiro, hora ligando, hora desligando o motor para ouvir as remadas. Seguiram por alguns minutos, quando o nevoeiro começou a se dissipar. Olharam ao redor e não reconheceram as margens; não havia construções, e sabiam que não estavam tão longe assim do portinho da casa. Ficaram confusos, mas como queriam alcançar a canoa, que agora conseguiam avistar, focaram na empreitada.

Conseguiram alcançar e cumprimentaram os seis tripulantes.  Tamanho foi o espanto ao serem recebidos por eles com armas em punho, apontando para os três homens desarmados. Seu avô tentou acalmá-los, oferecendo bebida e cigarros de palha que haviam levado no barco. Foi então que o homem mais bem vestido gritou a todos, pedindo que abaixassem as armas, e se apresentou como Casimiro de Albuquerque. Insistindo, chamou os outros dois que permaneceram com as armas em punho pelos nomes: — Matias, Pedro, baixem as armas! —  e explicou que aquele trecho costuma ser muito perigoso por conta dos índios. Os três homens se olharam sem entender nada: há décadas não havia mais nenhuma tribo indígena naquele trajeto. Do que aqueles homens, com roupas engraçadas, estavam falando?!

Agradecendo a gentileza, Casimiro virou-se aos companheiros de navegação, dizendo: — Acho que podemos descansar um pouco, pois a próxima etapa da viagem será muito penosa para todos. Vamos encostar e beber um pouco para descansar. —  E perguntou aos três homens quem eram. Então, Munduco, seu avô e Joca se apresentaram. Na canoa estavam, além de Casimiro, Matias e Pedro, outros três homens: Carlos, Vicente e Bartolomeu. Todos se cumprimentaram e seguiram para a margem, onde puderam descer dos barcos para descansar, beber, comer e conversar um pouco.

Enquanto os seis tripulantes do navio misterioso bebiam e comiam nervosamente, os três homens conversavam à parte, achando estranho o estilo da roupa e, por vezes, a forma como eles falavam – um linguajar antigo, mas compreensível. Seriam atores? Mas onde estaria o restante da equipe de filmagem? E assim passou algum tempo até que Casimiro virou-se para o trio, perguntando sobre sua sina.

Sina?! Não entendiam o porquê da pergunta. Vicente, tentando ser mais específico, perguntou o que tinha acontecido com eles para se encontrarem naquele lugar, onde apenas as almas sem destino permaneciam. Percebendo que continuavam sem entender, Matias disse: – O que os matou?

Foi então que bateu o desespero nos três homens: estavam vivos? Começaram a se olhar, a se apertar, a se beliscar e chegaram à conclusão de que não estavam mortos. Responderam, praticamente em coro, que estavam vivos; então os seis tripulantes ficaram espantados. Como podia aquilo? Como os vivos conversavam com os mortos?

Todos se levantaram, ficaram um olhando para o outro, e então os três homens vivos puderam perceber as cicatrizes nos homens do barco misterioso: um com um buraco no peito, outro com um braço dilacerado, manchas pelo corpo todo, como se a doença os habitasse. Começaram a rir, um riso nervoso que parecia meio psicótico. Munduco aproximou-se de Mathias, olhando bem para a cicatriz que ele tinha no pescoço, e percebeu que não era bem uma cicatriz, era um machucado aberto. Perguntou se podia tocar, ao que Mathias consentiu com um aceno de cabeça. Ao tocar o ferimento do homem, Munduco deu um pulo para trás e disse aos amigos: – Minha Nossa Senhora, está aberto ainda! – disse com espanto.             Os seis tripulantes sentaram-se e começaram a contar como a vida deles havia acabado naquele rio.




Gostou? Acompanhe os próximos capítulos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A dor da perda de um animalzinho

Quando perco um animal de estimação, é como se tivesse perdido um ente da família; aliás, é um ente da família. A dor é imensurável. Ontem, minha gata Penny morreu, e estou dilacerada. Por isso, decidi escrever hoje sobre a perda de meus animais, não como uma "homenagem macabra", e sim como um desabafo. Eu sempre tenho um animal de estimação, seja cachorro, gato ou os dois ao mesmo tempo, e sempre que eles se vão, digo que nunca mais vou pegar outro, porque a dor da perda é algo realmente ruim. Sofri todas as vezes que perdi meus animais de estimação, mas os que mais me machucaram foram o Setaou, a Ômega, Isis e Bastet, Peludo, a Lara, a Zelda e, finalmente, a Penny. Não que todos os outros animais que tive na infância não doessem, mas acho que, de certa forma, o amor era compartilhado, pois tínhamos muitos… Cada um marcou a sua forma, senti a falta de todos e ainda me lembro dos bons momentos. A cada perda, acho que nos fortalecemos, mas a dor ainda é grande; ela nunca dimin...

Por que, cargas d’água, a esperança estava na Caixa de Pandora?

Eu e minhas irmãs costumamos ter papos muito filosóficos, um pouco diferentes, sem aquela prepotência de quem tudo sabe. Enfim, recentemente, nas pesquisas sobre assuntos aleatórios na internet, Pricila leu um texto sobre a Caixa de Pandora. Em suma: Epimeteu havia recebido dos deuses uma caixa onde estavam todos os males. Ele disse à mulher, Pandora, que não a abrisse. Mas a mulher, você sabe, ô bicho curioso! E assim como Eva, lá foi Pandora fazer exatamente o que não devia: ela abriu a caixa. Todos os males saíram, e Pandora conseguiu prender apenas a esperança. Então, eu te pergunto: o que diabos a esperança estava fazendo dentro de uma coisa que continha todos os males? O que ela estava fazendo lá? Será a esperança um mal também? Penso que, uma vez que se tem esperança, mas não se age, isso é um mal. Mas uma vez que se tem esperança e se esforça para alcançar um objetivo, por que ela seria algo mau? Ou, como dizem da esperança: mesmo no caos ela existe, é a última a morrer, b...